Mortes de dentista e médico em 24h escancaram crise silenciosa na saúde mental de quem cuida

Saúde

Burnout, estresse, sobrecarga emocional e muita pressão afetam profissionais da linha de frente da saúde

Unidade de urgência da Santa Casa, em Campo Grande. (Foto: Arquivo)

“O fato de que as pessoas que estão tratando pessoas estão tirando a própria vida acende essa luz de alerta de como está o mundo, como está a saúde mental.” — Graziela Michelan, psiquiatra.

Em menos de 24 horas, Campo Grande testemunhou duas perdas brutais: um cirurgião-dentista e um médico foram encontrados mortos em circunstâncias que apontam para suicídio. A tragédia, além de abalar a comunidade médica, reacende uma discussão urgente e muitas vezes evitada: quem está cuidando de quem cuida?

A psiquiatra Graziela Michelan, diretora da Associação Sul-Mato-Grossense de Psiquiatria (ASMP), não mede palavras ao classificar o cenário: “Pressão, sobrecarga emocional, medo constante de errar. O burnout virou rotina entre os profissionais da saúde. E isso vem se convertendo em depressão, ansiedade — e, nos casos mais extremos, em suicídio.”

Médica psiquiatra, Graziela Michelan, da diretoria da ASMP. (Foto: Arquivo pessoal)

O aumento dos casos de exaustão psíquica não é novidade nos corredores hospitalares. Burnout, insônia, frustrações diárias e a dor invisível de testemunhar, dia após dia, o sofrimento humano em sua forma mais crua. Esses são os sintomas da crise emocional que afeta os profissionais da linha de frente da saúde pública e privada.

Além do esgotamento emocional, há um agravante menos comentado: a violência.

“Em média, 12 médicos são vítimas de violência por dia no Brasil”, informa levantamento do Conselho Federal de Medicina (CFM).

Essa violência se manifesta de múltiplas formas — física, verbal e, cada vez mais, digital. A advogada Stephanie Canale, especialista em direito médico, destaca que a internet se tornou um novo campo de batalha. “Muitos médicos vêm sendo expostos nas redes sociais de forma leviana, por pacientes que às vezes nem relatam situações reais. Isso destrói não só reputações, mas também estruturas emocionais.”

André Afif Elossais morreu na quarta-feira (4). (Foto: Reprodução)

No ano passado, Mato Grosso do Sul registrou quase mil ocorrências de agressão, desacato, calúnia, ameaça e constrangimento moral contra profissionais da saúde. E, embora redes sociais tenham ampliado o alcance da violência, o contato direto ainda assusta. “Eles continuam sendo agredidos em postos de saúde, onde estão tentando salvar vidas”, lamenta Canale.

A insegurança emocional é agravada pela desvalorização financeira. Mesmo em meio ao caos, muitos desses profissionais ainda não recebem o piso salarial da categoria. Graziela Michelan critica essa realidade:

“O estresse emocional se soma ao financeiro. A cobrança é absurda, e o retorno, muitas vezes, desumano.”

Bombeiros retirando o corpo do cirurgião dentista, do primeiro andar da Santa Casa. (Foto: Direto das Ruas)

Duas perdas em 24 horas: o que aconteceu?

Na quarta-feira (5), o cirurgião-dentista André Afif Elossais, responsável pelo Núcleo de Pesquisa da Santa Casa, morreu após cair do 6º andar do hospital. Segundo familiares, ele lutava contra a depressão e já havia tentado tirar a própria vida anteriormente.

Horas depois, um médico natural de Mato Grosso foi encontrado morto em casa, após sinais de agitação e um histórico recente de internação em clínica de recuperação. A Polícia Militar foi chamada, mas já era tarde.

Duas mortes em menos de um dia. Não foi coincidência. Foi sintoma.

E agora? Há esperança?

Sim. Mas é preciso quebrar o silêncio.

A psiquiatra Graziela insiste: “A prevenção precisa ir além do Setembro Amarelo. Saúde mental tem que ser política pública, prioridade institucional e rotina de cuidado coletivo”.

A boa notícia é que o Governo Federal, por meio do Ministério do Trabalho, aprovou uma nova diretriz na Norma Regulamentadora NR-1, que obriga empresas a considerarem riscos psicossociais — como estresse, sobrecarga emocional e assédio — no ambiente de trabalho.

Onde buscar apoio

Em Campo Grande, o Grupo Amor Vida (GAV) oferece apoio emocional gratuito pelo número 0800 750 5554. Há também os atendimentos do CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), além dos números emergenciais:

CVV – 188

Polícia Militar – 190

Corpo de Bombeiros – 193

Porque cuidar de quem salva vidas não é caridade. É obrigação de uma sociedade que se pretende saudável

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *